XXIV Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos

Validação de modelagem hidrodinâmica por meio de informações geográficas voluntárias

Estudo do evento extremo ocorrido no dia 28/01/2020 na bacia do córrego do Leitão, em Belo Horizonte - MG

ROSA, Deyvid W. B. 1; ARAÚJO, Ana Clara G. 2; ALMEIDA, Guilherme A. V. 3; NOGUEIRA, Clara D. 4; PINTO, João Victor O. B. 5; ROCHA, André F. 6; ELEUTÉRIO, Julian C. 7; NASCIMENTO, Nilo O. 8

Resumo

A crescente urbanização tem alterado a resposta hidrológica das bacias hidrográficas aos eventos chuvosos, com o aumento do escoamento superficial e da frequência da ocorrência de inundações nos centros urbanos. Em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, não é diferente, sendo possível observar problemas relacionados a enchentes em diversos pontos da cidade. Na bacia do córrego do Leitão ocorrem, frequentemente, inundações e consequentes danos à infraestrutura, prejuízos econômicos e até perdas de vidas humanas. Este estudo visa realizar uma análise do evento de chuva ocorrido no dia 28 de janeiro de 2020, considerado de natureza extrema, com um período de retorno estimado maior que 1.000 anos. As consequências desse evento foram destruição de infraestrutura e grande prejuízo a moradores e comerciantes da região. O evento foi simulado em modelo hidrológico calibrado e validado no Storm Water Management Model (SWWM) e, em seguida, as manchas de inundação foram obtidas por meio do software HEC-RAS. Os resultados da modelagem foram avaliados qualitativamente por meio de fotografias e vídeos disponíveis em mídias sociais, reportagens sobre o evento e dados fornecidos pela Defesa Civil. Por fim, uma comparação entre a análise qualitativa e a simulação hidráulica apontou que a mancha simulada representou bem os pontos relatados em fotografias e vídeos referentes ao escoamento superficial.

INTRODUÇÃO

As notícias de enchentes nos grandes centros urbanos do Brasil são frequentes, muitos deles vulneráveis a precipitações intensas e de curta duração. O crescimento populacional e a elevação da taxa de impermeabilização do solo nas bacias hidrográficas associados à obsolescência ou inadequação da infraestrutura de drenagem contribuem para o aumento do escoamento superficial.

A bacia do Córrego do Leitão, localizada na região Centro-Sul de Belo Horizonte (MG), apresenta áreas de alta susceptibilidade à formação de enxurradas e enchentes devido à combinação de fatores como geomorfologia, declividade e impermeabilização do solo (Reis et al., 2012). Dentre as enchentes registradas na bacia, a ocorrida em 28 de janeiro de 2020 culminou no transbordamento do canal. O volume extravasado escoou sobre as vias asfaltadas, provocando danos estruturais ao sistema de micro e macrodrenagem, além de perdas materiais referentes a veículos danificados e inundações em edificações.

Frente ao ocorrido, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) anunciou, em dezembro de 2020, a ordem de serviço para otimização do sistema de drenagem do Córrego do Leitão, que contempla a análise e o diagnóstico de estudos existentes e o levantamento de dados para elaboração de outros estudos, com a proposta de redução de riscos de inundação ao longo do curso d’água (PBH, 2020). Dentre os estudos existentes, destaca-se o elaborado por Rosa (2020), no qual se avaliou a resposta hidrológica da bacia considerando diferentes cenários de uso e ocupação do solo e a aplicação de técnicas compensatórias para o manejo das águas pluviais. Os resultados das modelagens hidrodinâmicas mostraram que a bacia possui áreas verdes e permeáveis relevantes para a redução da vazão de pico e do volume escoado e possui grande potencial para a implantação de infraestruturas verdes e azuis. O trabalho também constatou que a bacia de detenção de Santa Lúcia, implantada nos anos 1970 para o controle de inundações, apesar da perda de volume por assoreamento, continua desempenhando um papel relevante no amortecimento de cheias na bacia do córrego do Leitão.

A proporção dos impactos negativos do evento de 28 de janeiro de 2020, como a destruição de vias asfaltadas e grande área inundada, chamou a atenção de jornalistas e da sociedade civil. O período da inundação e os impactos negativos visíveis após a cheia foram registrados em mídias tradicionais, como jornais e noticiários, e em mídias sociais, através do compartilhamento de fotos e vídeos em diversas plataformas – Twitter, Facebook, Instagram, Youtube e WhatsApp. Estes registros em mídias sociais que possuem localização geográfica são conhecidos na comunidade científica como volunteered geographic information (VGI), ou informação geográfica voluntária.

Segundo Rollason et al. (2018), os modelos numéricos de simulação de inundações urbanas apresentam validação dificultada ou impossibilitada pela ausência ou pequena quantidade de dados de monitoramento que registrem as características do escoamento durante e logo após os eventos com discretização espacial e temporal adequada. Os autores demonstraram que, a partir de uma abordagem de validação baseada em VGI, é possível reconstruir em detalhes a dinâmica do escoamento e sua análise espaço-temporal.

A utilização de VGI na validação e análise de modelos numéricos de inundações urbanas tem sido observada em estudos recentes, como os elaborados por Kutija et al. (2014) para representar a inundação ocorrida em junho de 2012 em Newcastle, no Reino Unido; por Re et al. (2019) para representar a inundação ocorrida em fevereiro de 2014 em Buenos Aires, na Argentina; e por Feng et al. (2020) para mapear cheia provocada pelo furacão Harvey no sudeste do Texas, nos Estados Unidos. Macchione et al. (2019) afirmam que a utilização de vídeos e fotografias permite a análise da evolução do nível d’água e da velocidade de escoamento.

Considerando a grande quantidade de registros publicados em mídias tradicionais e sociais referentes à cheia ocorrida na bacia do Córrego do Leitão em 28 de janeiro de 2020, este estudo tem como objetivo realizar a simulação hidrodinâmica desse evento de cheia e, posteriormente, analisar e validar os resultados da modelagem hidrodinâmica a partir de fotografias e vídeos publicados em mídias tradicionais e sociais.

 

METODOLOGIA

As etapas metodológicas para elaboração deste estudo estão apresentadas na Figura 1. A Etapa 1 consistiu na modelagem hidrológica e hidráulica por meio do software SWMM, versão 5.1.015, desenvolvido pela Environmental Protection Agency (EPA) dos Estados Unidos. O modelo construído por Rosa (2017), na versão 5.0.011, foi aprimorado com a inserção de canais abertos paralelos aos canais subterrâneos para representação mais adequada do fluxo superficial e da propagação das vazões de extravasamento. Os canais superficiais foram representados por seções irregulares obtidas do Modelo Digital do Terreno (MDT) e conectados aos canais subterrâneos por meio dos nós. O método utilizado para representar os processos de intercepção e infiltração foi o do National Resources Conservation Service (NRCS), enquanto o método da onda dinâmica foi selecionado para cálculo da propagação de cheias. A inserção dos canais superficiais paralelos não alterou significativamente os resultados da calibração e da validação executadas por Rosa (2017), de modo que os mesmos parâmetros hidrológicos e hidráulicos obtidos para as condições atuais de uso e ocupação do solo foram utilizados neste estudo. Os dados de precipitação das estações de monitoramento E41 e E42, ambas localizadas na bacia em estudo, foram obtidos com a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) e inseridos no modelo.

Figura 1 – Fluxograma representativo da metodologia aplicada.

Para a modelagem hidráulica (Etapa 2), utilizou-se o software HEC-RAS versão 5.0.7, desenvolvido pela U.S. Army Corps of Engineers. Num primeiro momento, tentou-se estabilizar o modelo elaborado por Rosa (2017), no qual estavam representados os canais subterrâneos nas seções por meio da ferramenta lid, em regime não-permanente. Dessa forma, a modelagem dentro do canal seria unidimensional e, na superfície, bidimensional. Contudo, mesmo após muitas tentativas de ajustes de parâmetros de simulação, o modelo continuou numericamente instável, principalmente devido às confluências e dezenas de degraus presentes na rede de macrodrenagem simulada. Por isso decidiu-se representar os canais subterrâneos no SWMM e inserir somente os hidrogramas dos canais superficiais que representam o escoamento no sistema viário e áreas adjacente como condições de contorno no HEC-RAS.

Esses hidrogramas passaram por um tratamento antes de serem inseridos no HEC-RAS. Primeiramente, porque o significado do sinal negativo da vazão no SWMM diz respeito ao sentido do escoamento, indicando que o fluxo ocorre no sentido de jusante para montante. O sinal negativo da vazão como condição de contorno no HEC-RAS, por sua vez, indica a retirada desta vazão do sistema. Em segundo lugar, observou-se que a conexão entre os canais subterrâneos e superficiais no SWMM por meio dos nós não representava bem a capacidade hidráulica das estruturas que realmente conectam o sistema dual, ou seja, as grelhas, poços de visita e bocas de lobo ligadas diretamente ao canal subterrâneo de macrodrenagem. A forma mais verossímil de se representar essa conexão seria por meio da inserção, no modelo, de vertedores, orifícios e canais para representear as estruturas de microdrenagem e as grelhas, considerando funcionamento hidráulico diferenciado no caso de entrada ou saída de fluxo e de acordo com a profundidade (Jopia & Valentín, 2011; Girão et al., 2017). Essa seria uma abordagem muito dispendiosa em tempo de preparação de dados que ainda poderia, ao final, trazer maior instabilidade numérica à simulação. Acrescente-se a isso, o fato de que não existe um cadastro completo dessas estruturas de microdrenagem na bacia. Considerando todos esses fatores, o método utilizado para preparar os hidrogramas de saída para inseri-los no HEC-RAS consistiu em:

  1. Extração dos hidrogramas resultantes referentes aos canais superficiais;
  2. Subtração dos hidrogramas dos condutos de jusante pelos de montante para obtenção dos hidrogramas incrementais;
  3. Cálculo da capacidade média de engolimento do conjunto de bocas-de-lobo, grelhas e poços de visita (abertos) presentes no trecho;
  4. Avaliação da relação entre a capacidade de engolimento dessas estruturas e a vazão superficial, com a finalidade de simplificar os cálculos e dispensar a necessidade de determinação de curvas-chave para cada um dos trechos superficiais;
  5. Comparação entre a capacidade de engolimento calculada por trecho e o decremento obtido pela subtração do hidrograma de jusante pelo de montante;
  6. Seleção do menor valor (em módulo) entre os comparados pela etapa V, a fim de garantir que as vazões retiradas dos canais superficiais não sejam superiores à capacidade de engolimento das estruturas hidráulicas existentes.

Caso o hidrograma incremental calculado no passo II seja constituído apenas por vazões com sinal positivo ou nulas, o cálculo é encerrado nesse passo. Caso as vazões de jusante sejam menores que as de montante, há indícios de retorno do fluxo da superfície para o canal subterrâneo e a verificação segue para o passo III. Os hidrogramas incrementais resultantes desse processo de preparação foram inseridos nos pontos correspondentes como condições de contorno no HEC-RAS. O modelo, totalmente representado por meio de malha bidimensional, foi executado com sucesso e sem instabilidade numérica com a adequada definição dos tempos de cálculos computacionais. Dessa forma, os resultados espacializados de profundidade, velocidade e risco hidrodinâmico foram obtidos e extraídos para melhor representação em ambiente Sistema de Informações Geográficas (SIG).

A etapa 3 contemplou inicialmente a coleta de informações, fotografias e vídeos do evento em reportagens e notícias disponíveis em sítios da internet, publicações nas plataformas Twitter, Instagram e Youtube, e arquivos recebidos via WhatsApp. A confirmação dos locais dos registros foi feita por meio da informação apresentada na mídia, com validação por meio do Google Street View, recurso do Google Earth e do Google Maps. Aos dados coletados foram atribuídas localizações geográficas em ambiente SIG e os pontos foram plotados em um mapa, junto a algumas fotos.

A partir da localização geográfica e análise da direção do escoamento visualizada nos vídeos, delineou-se a trajetória da mancha de inundação. Os vídeos permitiram estimar a velocidade e a profundidade de escoamento, sendo que esta também foi estimada por fotografias tiradas durante o evento. As velocidades foram estimadas por meio da comparação entre a posição de objetos flutuantes e o tempo decorrido para sua movimentação. Os registros dos danos ocasionados pela enchente como a entrada de água em estabelecimentos também auxiliaram na estimativa da área inundada e da profundidade. Ao final da análise de todos os registros, foi possível traçar no SIG a área onde observou-se escoamento superficial sobre as vias.

Por fim, a etapa 4 consistiu na validação do modelo hidrodinâmico a partir da análise quali-quantitativa dos parâmetros velocidade e profundidade, classificando as análises em pontos superestimados, subestimados ou semelhantes à observação. Nesse caso, é importante ressaltar que as estimativas de velocidade e profundidade por meio dos registros em mídias envolvem grandes incertezas. Além disso, foi feita a análise qualitativa do risco hidrodinâmico, ao comparar com fotos que retratam a destruição ocorrida.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caracterização do evento hidrológico

Os registros de precipitação dos pluviômetros automáticos E41 e E42 (ver Figura 2) demonstram que o evento hidrológico ocorrido em 28 de janeiro de 2020 na região centro-sul de Belo Horizonte apresentou precipitações acumuladas elevadas em um curto espaço de tempo. Na estação

E41, localizada próxima ao exutório da bacia hidrográfica do córrego do Leitão, foi registrado um total acumulado de 80,8 mm entre 20:30 h e 22:30 h com duração de 120 minutos e intensidade média de 40,4 mm/h. Na estação E42, localizada nas cabeceiras, foi registrado um total acumulado de 183,4 mm entre 20:00 h e 22:30 h, com duração de 150 minutos e intensidade média de 73,4 mm/h.

O evento monitorado na estação E42 ultrapassa a faixa de abrangência proposta pela equação de Pinheiro e Naghettini (1998), de 1 a 200 anos, utilizada para o cálculo de Tempo de Retorno (TR). A equação de chuvas intensas foi estabelecida com base nas relações intensidade-duração-frequência regionalizadas (IDF); o estudo também contempla o desenvolvimento de hietogramas sintéticos de distribuição temporal, para as precipitações históricas da Região Metropolitana de BH. Extrapolando os quantis adimensionais da equação, por meio do ajuste de uma curva logarítmica aos quantis médios das durações de 2 e 3 horas, o evento corresponderia a um TR superior a 10.000 anos. Considerando as incertezas inerentes à extrapolação da equação baseada na série temporal menor que 50 anos, outras fontes foram consultadas para estimativa do TR do evento.

Nascimento et al. (2020) ajustaram uma distribuição estatística de Gumbel aos registros de precipitação sub-diária com dados da série histórica até 2015 e encontraram uma relação IDF alternativa à encontrada por Pinheiro e Naghettini (1998). Aplicando-se a equação apresentada por Nascimento et al. (2020), estimou-se um tempo de retorno de aproximadamente 2.500 anos para o evento com 150 minutos de duração. Uma terceira avaliação da frequência do evento, proposta por Caputo e Siqueira (2020), consistiu na comparação dos resultados do estudo das “Precipitações de Projeto de Vertedor de Emergência” propostas por Pinheiro (2011) para a estação Mina de Águas Claras, localizada a menos de 10 quilômetros da bacia do córrego do Leitão. De acordo com a precipitação de projeto referência da estação Mina de Águas Claras, o evento registrado na estação E42 no dia 28 de janeiro de 2020 apresentaria período de retorno entre 1.000 e 10.000 anos. Esses resultados ilustram as incertezas na estimativa de TR de eventos de precipitação extremos.

As consequências de um evento de elevada magnitude, sem precedentes no histórico de registros da bacia, incluíram alagamentos, inundações, carreamento de solo e sedimento, danificação de pavimentos e infraestrutura urbana, desestabilização de taludes e encostas, arraste de veículos e árvores de pequeno porte, rompimento de tubulações de esgotamento sanitário e abastecimento de água. A bacia de detenção Santa Lúcia atingiu sua capacidade máxima de armazenamento, o vertedor de emergência de soleira livre entrou em funcionamento, o que causou arraste de árvores e veículos nas imediações. Alguns apartamentos de um prédio vizinho ao parque também foram atingidos por parte do escoamento vertido, resultando em severos prejuízos materiais e elevado risco aos moradores.

A busca por registros de fotos e vídeos desse evento nas mídias tradicionais e sociais retornou um total de 73 vídeos, sendo 57 publicados na plataforma Twitter, 9 publicados na plataforma YouTube e 7 publicados na plataforma Instagram. Grande parte dos registros do dia 28, durante o evento, foram realizados pela sociedade civil e publicados também nos telejornais e reportagens. A cobertura dos impactos visíveis após o evento (dias 28/01, 29/01, 30/01, 31/01) foi realizada pelos principais telejornais. Grande parte dos registros fotográficos foi realizada nos dias seguintes ao evento e se encontram disponíveis em vários portais de notícias. Foram selecionadas 9 fotografias relevantes para a análise do evento. A Figura 2 apresenta a distribuição espacial dos registros de fotografias, vídeos e notificações à Defesa Civil.

A análise de tais registros permitiu a estimativa da velocidade de escoamento em 17 pontos e da profundidade em 52 pontos, além da análise da área de abrangência do escoamento superficial e trajetória da enxurrada que segue o curso do córrego do Leitão. Os registros demonstram o extravasamento do canal subterrâneo com o soerguimento de tampas de poços de visita desde a av. Cônsul Antônio Cadar, à montante da bacia de detenção Santa Lúcia, até a confluência com o ribeirão Arrudas, no cruzamento entre a rua Mato Grosso e a avenida do Contorno. Além dos registros em mídias, a Subsecretaria Municipal de Defesa Civil (Supdec) registrou 438 notificações de alagamentos em estabelecimentos comerciais e de serviços, além de 77 notificações de alagamentos em residências, 4 em imóveis públicos, 5 em imóveis classificados como comerciais/residenciais e 1 notificação de alagamento em imóvel industrial. O detalhamento das fontes dos registros e análises realizadas consta no material suplementar disponível no link https://bit.ly/3zbyo0P.

Figura 2 – Distribuição espacial dos registros de fotografias, vídeos e notificações à Defesa Civil.

 

Resultado da modelagem hidrológica

A Figura 3 apresenta os resultados da simulação do evento do dia 28 de janeiro de 2020 nas estações linimétricas E40 e E41. Nos gráficos, são apresentados os cotagramas simulados e os observados, bem como os níveis de alerta da Defesa Civil e a precipitação registrada nas estações E41 e E42. Observa-se falha no registro dos níveis d’água observados em ambas as estações, quando a profundidade de escoamento se aproxima da altura da galeria. Essas falhas estão provavelmente associadas a erros de leitura do sensor ultrassônico instalado nas estações, quando o nível d’água se eleva bruscamente e se aproxima do sensor. É possível notar, entretanto, a rápida resposta da bacia ao evento extremo, com a ascensão dos níveis d’água nos canais no baixo curso em menos de 20 minutos após o início da precipitação mais intensa. A Diretoria de Gestão das Águas Urbanas da Secretaria Municipal de Obras e a Supdec registraram alertas vermelhos no momento da precipitação em ambas as estações, indicando que o nível d’água alcançou 100% da profundidade do canal subterrâneo. No entanto, os níveis transmitidos e registrados no banco de dados apresentaram inconsistências, como valores negativos ou repetidos durante longo período.

Figura 3 – Cotagramas do evento do dia 28/01/2020 registrados e simulados nas estações linimétricas E40 e E41.

 

Resultados das Modelagem Hidráulica e Validação do Modelo

A comparação entre a reconstrução qualitativa do evento e o resultado da simulação hidráulica indicou que todas as áreas de registro de escoamento superficial em fotografias ou vídeos são abrangidas pela envoltória máxima simulada. Além disso, 521 pontos de registros de notificação de alagamento da Defesa Civil encontram-se dentro da envoltória máxima de inundação; outros 4 pontos encontram-se dentro da bacia: 2 deles na rua Netuno e 1 na rua Yvon Magalhães Pinto, mas a montante do início do trecho simulado; e 1 na rua Santa Catarina. Os resultados da modelagem hidráulica foram comparados com os valores de velocidade e profundidade estimados a partir dos vídeos e fotografias (Figura 4).

Figura 4 – Comparação entre os resultados de profundidade e velocidade máxima da modelagem hidráulica (representados pelos raster, ao fundo) e pontos de observação de acordo com registros de fotografias e vídeos.

As velocidades de escoamento simuladas variaram entre 0 e 3,35 m/s e as profundidades simuladas variaram entre 0 e 2,89 m. Os valores mais elevados ocorreram no Parque Vertedouro, nas ruas João Junqueira, Marília de Dirceu, Bárbara Heliodora, São Paulo e na Av. Prudente de Morais.

A Tabela 1 apresenta os resultados da análise comparativa indicando a quantidade de pontos onde o resultado da simulação hidrodinâmica subestimou (<), superestimou (>) ou foi semelhante (=) aos valores estimados nos pontos de observação. Foram considerados semelhantes os pontos cujas diferenças percentuais foram inferiores a 20%. Conforme indicado nas tabelas, cerca de 35% dos pontos de observação de velocidade e 90% dos pontos de observação de profundidade foram superestimados pelo modelo hidráulico. Estes resultados sugerem que os registros não capturaram o momento mais crítico da enchente. Isto é esperado pois durante o momento mais crítico a aproximação à enchente oferece perigo às pessoas conforme classificação do risco hidrodinâmico.

Tabela 1 – Análise comparativa da velocidade (V) e profundidade (P) de escoamento.
Localização na Bacia Profundidade Velocidade
< = > Total < = > Total
Alto Curso – A montante da Barragem Santa Lúcia 0 1 8 9 0 1 0 1
Médio Curso – A montante da Av. do Contorno 0 1 14 15 0 1 2 3
Baixo Curso – A jusante da Av. do Contorno 1 2 25 28 1 6 4 11
Percentual em toda a bacia 1,9% 7,8% 90,3% 6,7% 53,3% 40,0% 1

O risco hidrodinâmico está associado ao nível de perigo e vulnerabilidade ao qual pessoas e objetos estão submetidos em termos da combinação de velocidade e profundidade. Nesse sentido, utilizou-se a classificação de risco proposta pelo projeto RESCDAM, que considera os limites apresentados na Tabela 2 (Smith et al., 2014).

Tabela 2 – Classificação de Vulnerabilidade de Risco. Fonte: Smith et al. (2014)
Risco hidrodinâmico Risco hidrodinâmico Profundidade limite (m) Velocidade limite (m/s)
H1 Geralmente seguro para veículos, pessoas e edifícios. P×V ≤ 0,3 0,3 2,0
H2 Inseguro para veículos pequenos. P×V ≤ 0,6 0,5 2,0
H3 Inseguro para veículos. Crianças e idosos. P×V ≤ 0,6 1,2 2,0
H4 Inseguro para veículos e pessoas. P×V ≤ 1,0 2,0 2,0
H5 Inseguro para veículos e pessoas. Todos os edifícios vulneráveis a danos estruturais. Alguns edifícios menos robustos sujeitos à falha. P×V ≤ 4,0 4,0 4,0
H6 Inseguro para veículos e pessoas. Todos os tipos de edifícios considerados vulneráveis à falha. P×V > 4,0

A Figura 5 apresenta a classificação de risco hidrodinâmico da mancha de inundação, bem como algumas fotos tiradas após o evento. Os locais que apresentaram risco hidrodinâmico H5 e H6 constituem trechos sobre as vias asfaltadas. Já nas calçadas e edificações encontraram-se as classes H1, H2, H3 e H4. A Classe H6, que confere maior periculosidade para pessoas e edificações, ocorreu no Parque Vertedouro, nas ruas João Junqueira, Marília de Dirceu, Bárbara Heliodora, São Paulo e na Av. Prudente de Morais. Esse resultado é condizente com os registros analisados. No Parque Vertedouro (Ponto 1), árvores foram arrancadas e um carro que foi arrastado. Na rua João Junqueira (Ponto 2), a água promoveu o deslizamento de um talude e desmoronamento de muro de contenção. A água seguiu pela rua em direção à avenida Prudente de Morais, carregando asfalto e formando crateras (Ponto 3). Na rua Marília de Dirceu (Ponto 4) também se registrou o arraste de asfalto com formação de crateras na via, além do rompimento de tubulação de abastecimento de água e deformação de uma banca de jornal.

Figura 5 – Classificação de risco hidrodinâmico para a mancha de inundação do evento de 28 de janeiro de 2020 na bacia do Córrego Leitão.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O evento hidrológico ocorrido no dia 28 de janeiro de 2020 na bacia do córrego do Leitão foi caracterizado pela elevada intensidade de precipitação, um registro sem precedentes no histórico de monitoramento de chuvas da região. A partir da extrapolação das equações IDF da região, estimou-se que o evento possui um tempo de retorno entre 1.000 e 10.000 anos.

Os registros feitos durante o evento pela sociedade civil, disponíveis em sua maioria na plataforma Twitter, demonstraram a importância das mídias sociais como fonte de informações geográficas voluntárias. A análise de registros no formato de fotografias e vídeos permitiu estimar parâmetros como velocidade e profundidade de escoamento além de identificar as áreas onde ocorreram escoamento superficial, sua trajetória e os danos aos patrimônios móveis e imóveis, públicos ou privados.

A comparação entre os pontos de observação e os resultados da modelagem hidráulica demonstrou que as velocidades foram bem representadas, enquanto a maior parte das profundidades foi superestimada pelo modelo. Infere-se que os registros analisados não capturaram o momento mais crítico do evento, tendo em vista que a aproximação à enchente oferece perigo às pessoas conforme classificação do risco hidrodinâmico. Há igualmente incertezas associadas à modelagem hidrológica e hidrodinâmica que podem estar relacionadas às diferenças encontradas. A comparação entre a reconstrução qualitativa do evento e o resultado da simulação hidrodinâmica indicou que todas as áreas de registro de escoamento superficial em fotografias ou vídeos são abrangidas pela envoltória máxima simulada. Além disso, com a exceção de três pontos que estão a montante do trecho simulado e um ponto na rua Santa Catarina, todos os outros registros de notificação de alagamento e inundações da Defesa Civil na bacia do córrego do Leitão encontram-se dentro da envoltória máxima de inundação.

Finalmente, é importante ressaltar que, em 8 de agosto de 2019, foi aprovado o novo Plano Diretor de Belo Horizonte, instituído pela Lei Municipal nº 11.181 (BELO HORIZONTE, 2019), que alterou o zoneamento, os parâmetros urbanísticos e incluindo conceitos de sustentabilidade ambiental. Propõe-se a continuidade desse estudo, incorporando à metodologia a avaliação dos impactos hidrológicos de cenários alternativos de uso e ocupação do solo. Dessa forma, poderão ser avaliados os impactos da adoção dos novos parâmetros urbanísticos e medidas compensatórias definidas na legislação vigente sobre o risco de inundações, principalmente devido ao incremento na taxa média de impermeabilização e à aplicação de técnicas compensatórias nos lotes com potencial de renovação urbana. É provável que tais medidas não impactem significativamente eventos tão extremos, mas espera-se que resultem em redução de riscos para eventos mais frequentes.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Capes, à Fapemig e ao CNPq pelo apoio financeiro, à PROEX e PRPq da UFMG, pelo apoio à pesquisa, às agências municipais Sudecap, Prodabel e à Supdec pelo fornecimento de dados indispensáveis para o desenvolvimento desta pesquisa. O último autor é bolsista Pq-CNPq. Agradecemos também à HIDROBR pelo apoio no desenvolvimento do estudo.

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Referências Bibliográficas

BELO HORIZONTE. (2019). “Lei 11.181 de 8 de agosto de 2019”. Aprova o Plano Diretor do Município de Belo Horizonte e dá outras providências. Diário Oficial do Município, 2019.

1 Departamento de Engenharia Hidráulica, Universidade Federal de Minas Gerais, dwbarreto@gmail.com

2 HIDROBR, Rua Marília de Dirceu, 199 – 6º Andar – Lourdes, Belo Horizonte/MG, (31) 3504-2733, ana.araujo@hidrobr.com

3 HIDROBR, Rua Marília de Dirceu, 199 – 6º Andar – Lourdes, Belo Horizonte/MG, (31) 3504-2733, guilherme.almeida@hidrobr.com

4 HIDROBR, Rua Marília de Dirceu, 199 – 6º Andar – Lourdes, Belo Horizonte/MG, (31) 3504-2733, clara.demattos@hidrobr.com.

5 Universidade Federal de Minas Gerais, oborges.joao@gmail.com

6 Departamento de Engenharia Hidráulica, Universidade Federal de Minas Gerais, andre.felipe194@gmail.com

7 Departamento de Engenharia Hidráulica, Universidade Federal de Minas Gerais, julian.eleuterio@gmail.com

8 Departamento de Engenharia Hidráulica, Universidade Federal de Minas Gerais, niloon@ehr.ufmg.br